Intentona sem pé nem cabeça

A reação popular e institucional ao autogolpe presidencial na Coreia do Sul suscita uma ponderação sobre a força da instituição no enfrentamento da trama golpista entre nós. Instituição, recorde-se, é um modo regulatório da vida social que funciona por um “fazer saber”, constitutivo do processo de subjetivação. É o que fazem família, escola, religião e o próprio exército, instâncias pertinentes à convivência humana. Nelas Jean-Paul Sartre divisou uma característica contraditória, como conceito de algo inerte e, ao mesmo tempo, transformador.

A inércia cabe à parte estruturada, pretensamente imóvel. Reduzir processos vitais a “estruturas”, aliás, é o vezo das ciências sociais desde fins do século 19, em tradições intelectuais europeias e norte-americanas. Por isso, o profundo mal-estar civilizatório conhecido como racismo continua a ser analisado como “estrutural” quando, no entanto, se trata de seres humanos em movimento, em entrecruzamentos múltiplos, numa situação histórica de extração colonialista. A força motriz da mudança não está na estrutura, mas na oscilação, na luta social.

No golpe militar de 64 havia algum peso da estrutura, na medida em que os conspiradores, embalados pela continuidade do processo de substituição de importações sem alterar o capitalismo dependente, assombravam-se com os rescaldos ideológicos da Guerra Fria. No imaginário, o bicho-papão comunista estaria à espreita para expropriar latifundiários e devorar criancinhas. Como diziam agir por procuração divina, golpe era palavra grosseira, a ser trocada por “revolução”. Deus golpista? Não, revolucionário.

Na recente intentona, ninguém estava preocupado com estrutura nenhuma, porque nem sequer saberiam o que é isso, nem havia pelas costas nenhuma operação “Brother Sam”, com porta-aviões para a eventualidade de uma resistência. A sedição sem fundamento ocorria dentro do funcionamento contraditório de aparatos do Estado, com posições divergentes: adesões, hesitações e recuos.

O golpe era também tentativa de auto-organização, pois se jogava à cabra-cega, num ambiente de barata-voa. Nas mensagens trocadas, as autodefinições falavam sozinhas: “grupo de malucos”, “rataria”, “aloprados”. Antes de qualquer assassinato, torturavam o vernáculo. Poderiam ter sido contidos por uma prova de português do Enem.

Tratou-se de uma disfunção da instituição, contra ela própria enquanto núcleo de estabilidade. Instituição é feita de gente concreta e diversa. E a luta hoje não se trava entre abstrações como classes e ideologias, e sim entre indivíduos. A crueldade pessoal tem lugar de fala.

Vale, assim, considerar o estado psíquico de insurretos que procuram gato preto em quarto escuro inexistente. Foi o caso do presidente sul-coreano, numa intentona sem pé nem cabeça. Entre nós, militares querendo encontrar “comunismo” num país conservador, sem guerras, que os contempla em 2025 com um orçamento próprio de US$ 133 bilhões, valor maior do que o PIB da maioria dos países do mundo. Sem real motivação, resta um especial narcisismo sádico, em ações que envergonham Deus, pátria e família.

Daí a resistência de sujeitos institucionais, empenhados em afastar a nação do abismo. O golpe foi evitado por dois generais e pela hombridade de guardiões da Constituição, depois desvelado pela investigação exemplar da Polícia Federal. Mas fracassado também, no fundo, pela outra face da crueldade, a covardia, do suposto maior interessado, que amarelou, escafedeu-se, foi chorar pitangas na Disney.


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