Vladimir Carvalho plantou a semente do cinema novo em Brasília
Vladimir era um cangaceiro das artes; em vez de um fuzil, ele empunhava uma câmera ou uma máquina de escrever Remington. Já escreveram que era parente de Lampião. Mas ele era um cangaceiro sofisticado e humanista. Estudou filosofia na efervescente Universidade da Bahia, dos anos 1960, tendo na condição de colegas e amigos o compositor Caetano Veloso e o ensaísta Carlos Nelson Coutinho.
Vladimir não nasceu em Brasília, mas, como diz o ator João Antônio, renasceu em Brasília. Sem deixar de ser paraibano, ficou ainda mais brasileiro no Planalto. Ele é épico e a capital modernista, também. Em Brasília, reencontrou a aventura de redescobrir e refazer o Brasil, com as grandezas, mas também com as contradições e mazelas exasperantes. Chegou nos anos 1970, quando já era uma capital sitiada pelos militares e seus atos delirantes de exceção.
Glauber Rocha escreveu que Vladimir era o Vertov das caatingas; ele se transformou no Vertov do Cerrado, depois de 50 anos no Planalto. Trouxe para Brasília o espírito de inquietação de uma das nascentes do Cinema Novo, pois participou como assistente de Aruanda, documentário de Linduarte Noronha, em que, pela primeira vez, a luz crua do sertão estouraria na tela sem o filtro das lentes, e de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, na primeira versão, marco do despojamento do cinema-verdade no Brasil. Inspirado nas experimentações de Aruanda, Glauber faria a estética da fome desembocar em Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Com espírito obsessivo e tenacidade nordestina, filmou alguns dos principais momentos da saga de Brasília. Vladimir era capaz de acompanhar, com uma câmera na mão, um roqueiro durante 15 anos. Quando a fita estreava, o ex-guitarrista já havia se tornado evangélico, mas o nosso Vertov do Cerrado não se desapegava da devoção invencível pelo cinema. O amor de Vladimir por Brasília não excluía uma contundente visão crítica. Em seus filmes, ele revela o outro lado do cartão-postal e vai na contramão da história oficial.
Em Brasília Segundo Feldman, reconstituiu o clima dos tempos pioneiros da construção da cidade, envolvida nas nuvens de poeira e na música de martelos, guindastes, serrotes, vigas de aço atritadas e gritos do trabalho dos que erguiam a capital modernista no meio do ermo. É comovente ver a Esplanada dos Ministérios, o Congresso Nacional, o Palácio da Alvorada e o Palácio da Justiça em estado de esqueleto, varridos pela terra vermelha e assolados pelo ritmo trepidante do trabalho.
O documentário estabelece uma relação dramática entre as belíssimas imagens captadas pelo fotógrafo norte-americano Eugene Feldman e o depoimento de Luis Perseguini sobre um massacre de operários perpetrado pela famigerada GEB, uma corporação policial extremamente truculenta que cuidava da segurança da nova capital.
Se o tema é insinuado em Brasília segundo Feldman, no filme seguinte, Conterrâneos Velhos de Guerra, aprofunda, desdobra e explora novas facetas da aventura dos candangos expulsos para a periferia da capital modernista. A epígrafe pinçada em Berthold Brecht é reveladora: “Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão os nomes dos reis. Arrastaram eles os blocos de pedra?”, indaga Bretch. Com o instinto do antigo repórter, Vladimir confrontou, polemicamente, a versão dos operários com as de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, os construtores de Brasília. A certa altura, irritado, Niemeyer abandona a entrevista, abruptamente.
” aria-label=”Botão para direita” style=”color: black;”>
Barra 68 envereda por uma outra vertente da Brasília inconformista: a repressão violenta ao movimento de resistência dos estudantes da Universidade de Brasília, na virada dos anos 1960, depois da eclosão do regime militar. É um filme tenso, nervoso e dramático, que nos joga no atropelo da invasão do câmpus da UnB pela polícia em 1968, sob o cerco dos camburões, as explosões de bombas, as nuvens de fumaça de gás lacrimogêneo, os gritos de desespero, a tentativa de fuga desabalada e a sanha troglodita contra alunos, professores e laboratórios. A narrativa é calcada nas imagens impressionantes filmadas pelo então estudante de cinema Hermano Pena, no sufoco, correndo no descampado da UnB. É câmara na mão na marra, revelando uma Brasília rebelde, pouco conhecida do restante do país.
Quando Vladimir decidiu fazer um documentário sobre a geração liderada por Renato Russo, alguns torceram o nariz. Por que este venerável senhor vai se meter com o rock? Vladimir sempre fez arte política e, para ele, Rock Brasília — A era de ouro é apenas uma extensão do seu projeto de fazer filmes políticos. Em vez de fuzis, eles empunhavam guitarras para gritar contra a decadência do regime militar, a repressão nas superquadras, a pobreza de opções de lazer, o conformismo de parte da juventude e o mar de burocracia brasiliense oprimindo de todos os lados.
Vladimir fez uma crônica deliciosa, revelando o lado terno dos punks, filhos de professores universitários e diplomatas. São impagáveis as sequências em que Renato Russo perde um show do Aborto Elétrico no bairro Cruzeiro porque estava no meio do cerrado, em certa hora determinada por Yoko Ono, para reverenciar o ídolo John Lennon. Ou o depoimento de Silvia Seabra, a mãe de Felipe Seabra, guitarrista da Plebe Rude, ameaçando tomar um avião e dar umas bolachas no malsinado general Newton Cruz, chefe do SNI, depois da prisão do filho em Patos de Minas, durante um show da banda.
Mas a ação de Vladimir sobre Brasília não se limitava a fazer filmes essenciais sobre a história da cidade. Ele era uma pessoa de alma coletiva, parecia estar em todos os lugares, sempre estava de prontidão para alguma ação solidária.
O legado dele é, ao mesmo tempo, cultural, político, humano, afetivo e espiritual. Ele humanizou, civilizou, virilizou, dignificou e elevou Brasília com seu espírito aguerrido e inflamado. Vladimir é nosso líder das causas conquistadas e o nosso herói das causas perdidas.
%MCEPASTEBIN%
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Receba notícias no WhatsApp
Receba notícias no Telegram