Brasil firma parceria com centro europeu de pesquisa nuclear

O Brasil tornou-se, no fim de março, membro associado de um dos maiores e mais famosos centros científicos do mundo, o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern, na sigla em francês). A organização, com sede na fronteira entre a França e a Suíça, é responsável por várias das principais descobertas da física. Seu equipamento mais famoso é o Grande Colisor de Hádrons, o LHC, maior acelerador de partículas do mundo. Foi responsável por provar, por exemplo, a existência do Bóson de Higgs, a “partícula de Deus”, em 2013. Ela foi teorizada em 1964, pelo vencedor do Prêmio Nobel Peter Higgs, morto na segunda-feira passada, aos 94 anos.

O acordo foi assinado em 2022, mas os procedimentos internos de aprovação só foram finalizados agora, tornando o Brasil o primeiro país das Américas a fazer parte, e o terceiro fora a Europa. O Correio conversou sobre o tema com o diretor-geral do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnpem), Antônio José Roque.

O centro atua em parceria com o Cern há décadas e teve papel fundamental na adesão do Brasil, que agora financiará o centro europeu e participará da tomada de decisões. Roque destaca que a parceria aprofundada coloca o Brasil como “sócio de um dos maiores desafios da humanidade”, e traz amplos benefícios para cientistas e mesmo empresas brasileiras, que poderão participar das licitações para venda de componentes ao Cern.

O pesquisador destaca ainda que a ciência brasileira participa da fronteira do conhecimento e que o acelerador Sirius, criado pelo Cnpem, é um dos mais avançados do mundo em sua categoria. Ele ressalta, porém, que faltam recursos para pesquisa e desenvolvimento no Brasil, e pede atenção com a perda de cérebros brasileiros. Leia os destaques da entrevista:

O que muda com a adesão do país como membro associado?

O Brasil passa a ter representação formal no conselho do Cern, que toma as decisões estratégicas. Pode ter um peso relativamente pequeno, porque outros países têm contribuição muito maior, mas é uma mudança importante e estratégica. O Brasil também ganha a oportunidade de ter suas empresas participando das concorrências internacionais para vender componentes e peças.

Quais oportunidades se abrem para os profissionais brasileiros?

Membros associados podem enviar engenheiros e cientistas para passar um tempo no Cern, inclusive, sendo remunerados. Essas pessoas estarão trabalhando em tecnologias de fronteira e podem retornar ao Brasil como pesquisadores ou irem para empresas. Isso abre um espaço de formação em, talvez, um dos laboratórios mais avançados do mundo.

O Cnpem atua nessa parceria e já tem um acordo, fechado em 2020, com o Cern. Que tipo de frutos já rendeu?

O interesse maior do acordo é na área de supercondutores. Não tínhamos essa expertise, e o Cern é um dos lugares mais avançados do mundo nesse tema. Foi feito um programa de transferência de tecnologia. Nós codesenhamos um dispositivo que, eventualmente, pode ser instalado no Sirius, que vai aumentar a capacidade dele. Com isso, adquirimos a tecnologia de uma maneira muito mais rápida.

Esse foi um dos fatores para a adesão do Brasil?

O Cern deixou muito claro que, para que a gente pudesse continuar a ter essa transferência, olhar desenhos, processos, o Brasil teria que ser um membro associado. Isso beneficia o Cnpem, mas também empresas brasileiras. Estamos em discussão com a WEG, Embraer, empresas grandes, para desenvolver protótipos — motores supercondutores para aerogeradores, sistemas supercondutores que podem ser utilizados em aviação. O acesso a uma tecnologia de fronteira tem valor inestimável.

Em quais áreas o Cnpem atua?

O Sirius se destaca, mas temos muito mais. Temos um parque de microscopia eletrônica enorme, plantas-piloto de biorenováveis, além do desenvolvimento de fármacos e tecnologias de saúde. O Cnpem atua em nanotecnologia e nanociência, por exemplo, na compreensão de processos biológicos avançados. Há uma pegada importante de conexão da saúde com o clima. Além dessa parte muito forte de engenharia e instrumentação científica, que nasce do Sirius.

Qual é exatamente a função do Sirius?

Um síncrotron é como se fosse um gigantesco microscópio para gerar Raio-X, principalmente, mas também ultravioleta e infravermelho, de altíssimo brilho. Eu sempre comparo uma lanterna com uma ponteira laser. A lanterna é de baixo brilho, boa para iluminar objetos grandes, mas uma ponteira laser é melhor para iluminar com precisão um objeto pequeno. O que se quer é enxergar na escala dos átomos, das moléculas. A nanoestrutura e organização dos diferentes materiais.

Há semelhança com o famoso LHC?

Muita gente questiona “ah, como é que o (LHC) do Cern tem 27 quilômetros (de extensão) e o Sirius tem meio quilômetro e é um dos mais avançados do mundo?”. São máquinas com objetivo completamente distintos, mas ambas são aceleradores. O que o Cern faz no LHC é acelerar prótons e núcleos para colidir uns com os outros e gerar condições locais de energia muito próximas ao que havia na origem do Universo.

Os aceleradores são muito mais comuns do que se imagina, não?

Você usa em medicina, para tratamento de câncer. Hoje, inclusive, há uma tendência que o Brasil não tem e estamos trabalhando, que são aceleradores de prótons para tratar câncer. Você pode ter aceleradores para análise de materiais. Se eu quero ver o que está dentro de um contêiner, preciso de fontes de Raios-X, ou de raios gama, que são aceleradores. O fato de o Cnpem dominar a tecnologia de ponta a ponta permite que ele possa também atuar nessas áreas.

Sabemos que a ciência brasileira nada contra a corrente. Quais são os maiores entraves?

Continuidade e regularidade de recursos. As oscilações de financiamento são extremamente danosas, porque os prazos são longos. Uma das dificuldades da falta de orçamento é que você vai sucateando a infraestrutura. Eu costumo dizer que é muito difícil convencer a sociedade da importância do investimento em ciência, porque demora para se transformar numa solução para a saúde, num fármaco, ou em um novo produto. A ciência não precisa necessariamente fazer isso, há um avanço do conhecimento, que já tem o seu valor intrínseco. Mas reconheço a importância do resultado prático.

Como avalia o cenário atual?

Estamos em uma situação um pouco melhor, com a recomposição do Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), mas ainda há uma carência muito grande de recursos para fazer a sustentação do sistema. É o que deveria estar indo para o CNPq, para pagar bolsas, para diversas unidades, para o próprio Cnpem. Esses recursos ainda estão muito abaixo do necessário, apesar de termos uma melhoria do orçamento de forma ampla.

Há uma dificuldade também no Brasil em transformar a ciência em aplicações práticas?

Quem faz a inovação na ponta são as empresas. Há questões macroeconômicas que devem ser indagadas, sobre o porquê de o Brasil não ter um conjunto grande de empresas que façam pesquisa e inovação. Os indicadores de inovação são sempre piores do que os de pesquisa. Foi feita uma série de iniciativas, mas é uma questão difícil de reverter. Passam por isso, ambiente econômico, regulações, você conseguir ter a visão que precisa competir mundialmente.

A falta de recursos impede o avanço?

Não, a ciência brasileira tem tido resultados muito importantes. Durante a covid, a gente viu a capacidade de diversos grupos, que fizeram trabalhos com impacto mundial. Se não me engano, o Brasil está em 13º em produção científica. Ele vem conseguindo manter um espaço importante. Nós temos grupos, incluindo o Cnpem, que são extremamente respeitados pelos outros países. O problema maior é a fuga de cérebros. Um ambiente sem perspectiva, com uma infraestrutura que não é competitiva, faz com que seus jovens procurem atividades em outros lugares.

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